Para suprir falta de bolsos nos vestuários tradicionais (kimono, yukata, kosode), os japoneses usavam uma espécie de nécessaire preso por cordão duplo ao obi (faixa ao redor da cintura), os inroh. Eram caixinhas de metal ou madeira laqueada ornada com pinturas maki-e,
e com divisões que serviam para levar medicamentos, fumo, piteira,
dinheiro, selos etc.. Para maior segurança, o cordão tinha um fecho (ojime), e, para que o cordão não se soltasse, um pequeno objeto entalhado, netsuke, o prendia ao obi (ne=raiz; tsuke=amarrar, prender).
Pouco maior que o tamanho de um polegar, os netsukes eram
esculpidos em materiais variados: osso, chifre, casco de tartaruga,
madeira, metal, marfim. Lisinhos, sem arestas nem rugosidades, são
agradáveis ao toque. De uso cotidiano até o Período Edo (1615-1868) e
feitos por artesãos hábeis em miniesculturas, foram se tornando objetos
de rara arte e perícia. Como à gente comum, abaixo da classe dos
samurais, não era permitido usar ornamentos nem joias, a crescente
classe de ricos negociantes adotou os netsukes como adornos
pessoais. Para provê-los, começaram a surgir muitos artesãos escultores,
criando escolas e estilos de renome. Ao redor da Restauração Meiji
(1868), com os japoneses aderindo ao uso de roupas ocidentais – calças e
paletós com bolsos – os inroh caíram em desuso. Mas europeus apaixonados por japonaiserie (coisas e artes japonesas) começaram a descobrir e colecionar esses objetos. Artesãos e escultores continuaram então a fabricá-los visando esses colecionadores.
Mercadores de arte em Londres notam crescentes e contínuo interesse por antigas peças de netsuke. Leilões
dessas esculturas batem recordes de audiência e preço. Colecionadores e
conhecedores os classificam pela antiguidade, matéria-prima, origem,
estilo, escultor/entalhador, e escola. Em novembro passado, durante um
leilão de coleção de netsuke do século XVIII, uma peça de marfim esculpida em figura de shishi (leão) alcançou a cifra de US$ 416.000, após lances acirrados. Essas
pequenas e táteis esculturas contam histórias do Japão antigo. São
figuras de inspiração diversa: gente comum (camponeses, pescadores,
guerreiros), animais, peixes, conchas, insetos, deuses e diabos,
máscaras, objetos do cotidiano (taças de chá, cabaças, berinjelas,
flores). As expressões das figuras revelam emoções de alegria, tristeza,
frustração, ira, ternura.
Pouco se sabe sobre a origem dessas esculturas. É certo que já existiam no século XV no Japão, e a inspiração dos primeiros netsukes certamente
veio da China. Uma telenovela brasileira atualmente no ar fala de um
antigo tesouro chinês, disputado na trama, de peças de soldadinhos (uma
alusão a soldados de terracota de Xian?) que pelo preço estimado na
novela (uns US$ 200.000 cada peça), só devem ser de raro e antigo jade…
Mas a história deve ter-se inspirado em recente best seller europeu que fala destas obras de arte em miniatura.
Edmund de Waal, famoso ceramista inglês e autor do elegante sucesso
mundial “A Lebre com Olhos de Âmbar” (intrigante relato sobre memórias
de sua família centradas numa coleção de netsuke que o autor herdara de um tio-avô em Tóquio), diz: “Acho que netsukes se
tornaram tão populares no Ocidente porque representam uma face muito
compreensível da arte japonesa; além de agradáveis ao toque, contam
histórias popularescas, de cunho tragicômico.” De Waal acrescenta que
museus britânicos registram um interesse cada vez maior das pessoas por
esses mimos como consequência do livro dele que já vendeu mais de 700.000 exemplares pelo mundo. O único museu dedicado a netsuke no Japão fica em Quioto, nas proximidades do Castelo de Nijô, distrito de Mibu (Kyoto Seishu Netsuke Art Museum).
Um tio, em Bastos, no interior do estado de São Paulo, conservava um inroh, que pertencera a meu avô materno. Laqueado de preto e salpicado de pétalas douradas de flor de cerejeira, era guarnecido de netsuke em marfim esculpido em figura de Ebisu, deus japonês da fortuna. Meu tio o usava para manter apetrechos de kiseru (espécie de cachimbo). Não tive a sorte de herdar nenhum netsuke antigo
como o felizardo Edmund de Waal (ele herdou 264, todos valiosíssimos!),
mas em criança, misto de temeroso fascínio me atraía ao brilho
misterioso que emanava do inroh, e ao sorriso enigmático do Ebisu sobre a escrivaninha no gabinete do tio.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGostei muito desta postagem!
ResponderExcluirBem feita, com boas informações e belas imagens.
São detalhes do cotidiano que transformam a História em algo interessante para as pessoas em geral!
Parabéns.
Graças Sylvio, apesar de tardia, expresso em minha mensagem sinceros agradecimentos por seus elogios
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