FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Sexualidade:
1º-Com
relação ao Brasil, que o diga o ditado: “Branca para casar, mulata para
f..., negra para trabalhar”; ditado em que se sente, ao lado do
convencialismo social da superioridade da mulher branca e da
inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata... (pág.72)
Alimentação:
2°-O
português no Brasil teve de mudar quase radicalmente o seu sistema de
alimentação, cuja base se deslocou, com sensível déficit, do trigo para a
mandioca; o seu sistema de lavoura, que as condições, físicas e
químicas de solo, tanto quanto as de temperatura ou de clima, não
permitiram fosse o mesmo doce trabalho as terras portuguesas. (pág.76)
Colonização:
3°-Antes
de vitoriosa a colonização portuguesa do Brasil, não se compreendia
outro tipo de domínio europeu nas regiões tropicais que não fosse o da
exploração comercial através de feitorias ou da pura extração de riqueza
mineral. (pág. 78)
4°-O
colonizador português do Brasil foi o primeiro entre os colonizadores
modernos a deslocar a base da colonização tropical da pura extração de
riqueza mineral, vegetal ou animal - ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o
marfim – para a de criação local de riquezas. (pág. 79)
6°-No
Brasil, como nas colônias inglesas de tabaco, de algodão e de arroz da
América do Norte, as grandes plantações foram obras não do estado
colonizador, sempre somítico em Portugal, mas de corajosa iniciativa
particular. Esta é que nos trouxe pela mão de Martim Afonso, ao Sul, e
principalmente de um Duarte Coelho, ao Norte, os primeiros colonos
sólidos, as primeiras mães de família, as primeiras sementes, o primeiro
gado, os primeiros animais de transporte, plantas alimentares,
instrumentos agrícolas, mecânicos judeus para as fabricas de açúcar,
escravos africanos para o trabalho de eito e de bagaceira. (pág. 80)
7°-(...)
Oliveira Viana tem razão quando escreve que entre as Índias “com uma
maravilhosa riqueza acumulada e uma longa tradição comercial com os
povos do Oriente e Ocidente” e o Brasil “com uma população de aborígines
ainda na idade da pedra polida” havia diferença essencial. “Essa
ausência de riqueza organizada, essa falta de base para organização
puramente comercial”... (pág. 87)
8°-Grande
parte de sua alimentação davam-se eles ao luxo tolo de mandar vir de
Portugal e das ilhas; do que resultava consumirem viveres nem sempre bem
conservados: carne, cereais e até frutos secos, depreciados nos seus
princípios nutritivos, quando não deteriorados pelo mau acondicionamento
ou pelas circunstâncias do transporte irregular e moroso. Por mais
esquisito que pareça, faltavam à mesa da nossa aristocracia colonial
legumes frescos, carne verde e leite. Daí, certamente, muitas das
doenças do aparelho digestivo, comuns na época e por muito doutor
capturas atribuídas aos “maus ares”. (pág.98).
9º
- Na zona agrícola tamanho foi sempre o descuido por outras lavouras
exceto a da cana-de-açúcar ou do tabaco, que a Bahia, com o todo o seu
fasto, chegou no sec.XVIII a sofrer de “extraordinária falta de
farinhas”, pelo que de 1788 em diante mandaram os governadores de a
capitania incluir nas datas de terra a clausula de que ficava o
proprietário obrigado a plantar “mil covas de mandioca por cada escravo
que possuísse empregado na cultura da terra”. (pag.99)
10º-
(...) terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil
dos três séculos colônias (...). Os grandes senhores rurais sempre
endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da
população o suprimento de víveres. (pag.100-101)
11º-
(...). O bispo de Tucumã, tendo visitado o Brasil no século XVII,
observou que nas cidades “mandava comprar um frangão, quatro ovos e um
peixe e nada lhe traziam, porque nada se achava na praça nem o açougue”;
tinha que recorrer às casas particulares dos ricos. (...). Anchieta
refere nas suas que em Pernambuco não havia matadouro nas vilas
precisando os padres do colégio de criar algumas cabeças de bois e vacas
para sustento seu e dos meninos: “se assim não o fizessem, não teria o
que comer”. E acrescenta: “Todos sustentam - se mediocremente ainda que
com trabalho por as cousas valerem mui caras, e tresdobro do que em
Portugal”. Da carne de vaca informa não ser gorda: “não muito gorda por
não ser a terra fértil de pastos”. E quanto a legumes: “da terra há
muito poucos”. É ainda do padre Anchieta a informação: “Alguns ricos
comem pão e farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e
de Portugal também lhes vem vinho, azeite, azeitona, queijo, conserva e
outras cousas de comer”. (pag.102)
12º-
A eficiência estava no interesse do senhor conservar no negro- seu
capital, sua maquina de trabalho, alguma coisa de si mesmo: de onde a
alimentação farta e reparadora que Peckolt observou dispensarem os
senhores aos escravos no Brasil. (pag.107)
13º-
Transforma-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar
dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar
brigar na sua presença capoeiras, galos e canários- tantas vezes
manifestos pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando
violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no
exercício de posição elevada, política ou administração pública; ou no
simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido
ou criado em casa-grande de engenho. (pag. 113-114)
14º-
(...) a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do
sadismo do mando, disfarçado em “principio Autoridade” ou “defesa da
Ordem”. Entre essas duas místicas- a da Ordem e da liberdade, a da
Autoridade e a Democracia- é que se vêm equilibrados entre nós a vida
política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. (...)
Talvez em parte alguma se esteja verificado com igualdade o encontro, a
intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou
antes, antagônicas, de cultura, como o Brasil. (...) o regime
brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos,
flexíveis e plásticos. (pag.114-115)
15º-
Na cristianização dos caboclos pela música, pelo canto, pela liturgia,
pelas profissões, festas, danças religiosas, mistérios, comédias, pela
distribuição de verônicas com ágnus-dei; que os caboclos penduravam no
pescoço, de cordões, de fitas e rosários; pela adoração de relíquias do
Santo Lenho e de cabeças das Onze mil virgens. (pag. 115)
16º-
Os espanhóis apressam entre os incas, astecas e maias a dissolução dos
valores nativos na fúria de destruírem uma cultura já na fase de semi
civilização; já na segunda muda; e que por isso mesmo lhes pareceu
perigosa ao cristianismo e desfavorável à fácil exploração das grandes
riquezas minerais. (pag. 157)
17º-
O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios
padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé
em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela
devassidão. As mulheres eram primeiras a se entregarem aos bancos, o
mais ardente indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses.
Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho. (pag. 161)
18º-
(...)- “o índio não faz distinção definida entre homem e o animal.
Acredita que todos os animais possuem alma, em essência da mesma
qualidade que a do ser humano; que intelectual e moralmente seu nível
seja o mesmo que o homem.” (pag. 167)
19º-
(...). O da freqüência do encarnado no trajo popular da mulher
brasileira, principalmente no Nordeste e na Amazônica, típico daqueles
em que as três influências- a ameríndia, a africana e a portuguesa-
aparecem reunidas em uma só, sem antagonismo nem atrito. Em sua origem, e
por qualquer das três vias, trata-se de um costume místico, de proteção
ou de profilaxia do individuo contra espíritos ou influências más.
(pag. 173)
20º-
Aos portugueses parece que a mística do vermelho se teria comunicado
através dos mouros e dos negros africanos; e tão intensamente que em
Portugal: O vermelho domina como em nenhum país da Europa, não só o
trajo das mulheres do povo... Como por profilaxia contra malícias
espirituais, vária outra expressão da vida popular e da arte domestica.
Vermelho deve ser o telhado das casas para proteger quem mora debaixo
deles. (pag.173-174)
21º-
(...) Embora já um tanto perdida entre o povo a noção profilática do
vermelho, é evidente que a origem dessa predileção prende-se a motivos
místicos. E é ainda o encarnado entre os portugueses a cor do amor, do
desejo de casamento. (pag.174)
22º-
Nos africanos, encontra-se a mística do vermelho associada às
principais cerimônias da vida, ao que parece com o mesmo caráter
profilático que entre os ameríndios. (pag. 174)
23º-
Como salienta Karsten, o selvagem considera os grandes inimigos do
corpo não os insetos e bichos, mas os espíritos maus. Estes o homem
primitivo imagina sempre à espreita de oportunidades para lhe penetrarem
no corpo: pela boca, pelas ventas, pelos olhos, pelos ouvidos, pelo
cabelo. Importa, pois, que todas essas partes, consideradas as mais
criticas e vulneráveis do corpo, sejam particularmente resguardadas das
influências malignas. Daí o uso de batoques, penas e fusos atravessados
no nariz ou nos lábios; de pedras, ossos e dentes de animais; a raspagem
de cabelo, que no Brasil Pero Vaz de Caminho foi o primeiro a notar nos
índios e nas índias nuas; os dentes às vezes pintados de preto. Tudo
para esconjurar espíritos maus, afastá-los das partes vulneráveis do
homem. (pag. 175)
24º-
Como no caso da mandioca, no peixe é a Amazônica a região de cultura
brasileira que se conserva mais próxima das tradições indígenas. (pag.
194)
25º-
(...) ao amendoim, ou mendubi, produto que os indígenas não colhiam à
toa pelo mato: era dos raros que faziam parte do seu rudimentar sistema
de agricultura: “em a qual planta e beneficio dela não entra homem
macho; só as índias os costumam plantar. (pag. 197)
26º-
Gabriel Soares fixa o costume entre os índios de porem nos filhos nomes
de animais, peixe, arvore etc. nomes que Karsten verificou serem em
geral os dos nomes animais representados nas máscaras de danças
sagradas... Eram os nomes em certas tribos substituídos por uns como
apelidos, parecendo pertencer a essa categoria os nomes “nada poéticos
recolhidos por Teodoro Sampaio: Guiraguinguira/ o traseiro do pássaro),
Miguiguaçu (as nádegas grandes), Cururupeba (o sapo miúdo) etc. Parece
que o fim desses nomes era tornar a pessoa repugnante dos demônios.
(pag. 210)
27º-
(...) é o folclore, são os contos populares, as superstições, as
tradições que o indicam. São as muitas historias, de sabor tão
brasileiro, de casamento de gente com animais, de compadrismo ou amor
entre homens e bichos, no gosto das que Hartland filia às culturas
totêmicas. História que correspondem, na vida real, a uma atitude de
tolerância, quando não de nenhuma repugnância, pela união sexual do
homem com besta; atitude generalizadíssima entre os meninos brasileiros
do interior. No sertanejo mais do que no de engenho; neste, porém,
bastante comum para pode ser destacada como complexo nesse caso tanto
sociológico como freudiano- da cultura brasileira. (pag. 211)
28º-
Gabriel Soares, com a sua sagacidade de homem pratico, apresenta os
caboclos aqui encontrados em 1500 como “engenhosos para tomarem quanto
lhes ensinam os brancos”; excetuando precisamente aqueles exercícios
memônicos e de racionío e abstração... A principio, em ensinar aos
índios em seus colégios: “Coisa de conta” ou de “sentido”, nas palavras
do cronista ler, contar, escrever, soletrar, rezar em latim. Em tais
exercícios se revelariam os indígenas sem gosto nenhum de aprender;
sendo fácil de imaginar a tristeza que deve ter sido para eles o estudo
nos colégios dos padres. Tristeza apenas suavizada pelas lições de canto
e música; pela representação de milagres e de outros religiosos; pela
aprendizagem de um ou outro oficio manual. Daí concluir Anchieta pela
“falta de engenho” dos indígenas; o próprio. Gabriel Soares descreve os
Tupinambás como “muitos bárbaros” de entendimento. (pag.214)
29º-
O processo civilizador dos jesuítas consistiu principalmente nesta
inversão: no filho educar o pai; no menino servir de exemplo ao homem:
na criança trazer ao caminho do Senhor e dos europeus a gente grande.
(pag. 218)
30º-
Ainda assim o Brasil é dos países americanos onde mais se tem salvado
da cultura e dos valores nativos. O imperialismo português- o religioso
dos padres, o econômico dos colonos- se desde o primeiro contato com a
cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-las de repente...
(pag. 231)
31º-
(...) A introversão do índio, em contraste com a extroversão do negro
da África, pode-se verificar a qualquer momento no fácil laboratório
que, para experiências desse gênero, é o Brasil. Contrastando-se o
comportamento de populações negróides como a baiana-alegre, expansiva,
sociável, loquaz- com outras menos influenciadas pelo sangue negro e
mais pelo indígena a piauiense, a paraibana ou mesmo a pernambucana
tem-se a impressão de povos diversos. Populações tristonhas, caladas,
sonsas e até sorumbáticas, as do extremo Nordeste, principalmente nos
sertões; sem a alegria comunicativa dos baianos; sem aquela sua
petulância às vezes irritante. Mas também sem a sua graça, a sua
espontaneidade, a sua cortesia, o seu riso bom e contagioso. Na Bahia
tem-se a impressão de que todo dia é dia de festa. Festa de igreja
brasileira com folha de canela, bolo, foguete, namoro. (pag. 372)
32º-
A verdade é que importaram- se para o Brasil, da área mais penetrada
pelo islamismo, negros maometanos de cultura superior não só à dos
indígenas como à da grande maioria dos colonos brancos- portugueses e
filhos de portugueses quase sem instrução nenhuma, analfabetos uns,
semi- analfabetos na maior parte. Gente que quando tinha de escrever uma
carta ou de fazer uma conta era pela mão do padre-mestre ou pela cabeça
do caixeiro. Quase só sabiam lançar no papel a jamegão; e este mesmo em
letra troncha. Letras de mesmo aprendendo a escrever. (pag.381-382)
34º-
(...) O relatório do chefe de policia da província da Bahia, por
ocasião da revolta, o Dr. Francisco Gonçalves Martins, salienta o fato
de quase todos os revoltosos saberem ler e escrever em caracteres
desconhecidos (...) “se assemelham ao árabe”, acrescenta o bacharel,
pasmado, naturalmente, de tanto manuscrito redigido por escravo. (...) É
que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior número de gente
sabendo ler e escrever do que no alto das Casas-Grandes. (pag. 382)
35º-
(...) conselheiro Rui Barbosa, ministro do Governo Provisório após a
proclamação da Republica de 1889, por motivos ostensivamente de ordem
econômica-a circular emanou do Ministro da Fazenda sob o nº29 e com data
de 13 de maio de 1891- mandou queimar os arquivos da escravidão. Talvez
esclarecimentos genealógicos preciosos se tenham perdido nesses
autos-de-fé republicanos. (pag. 383-384)
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