Em resumo, durante todo o período moderno a crença na interferência do sobrenatural e as práticas e receitas mágicas encontravam-se disseminadas entre a população. Era fácil o acesso aos benzedores e curadores em caso de necessidade ou ser vítima de malefícios causados por algum feiticeiro.
Dentro desse cotidiano as práticas mágicas relacionadas à cura, benzedura e adivinhação buscaram aliviar as frustrações, dores e dificuldades dos colonos. Não obstante, a estrutura arboriforme das práticas mágicas revelam ligações múltiplas onde equilíbrios poderiam ser destruídos e restabelecidos.
Esta ambiguidade revela-se desde os primeiros trabalhos acerca do universo mágico. Michelet, por exemplo, descreve a feiticeira ora essencialmente rebelde envenenando e lançando sortilégios contra aqueles que a oprimem, ora aventureira, empreendendo buscas noturnas por ervas medicinais na tentativa de salvar moradores da aldeia.
A mulher destacava-se dentro do núcleo familiar exercendo o controle da alimentação e cuidando de crianças e doentes. Desta forma, poderia fazer o mal e envenenar com maior facilidade. Além disso, dentro das casas senhoriais, foram as mucamas as responsáveis pela higiene e alimentação das famílias mais abastadas.
Apesar de conhecerem segredos mágicos ancestrais
Os delitos religiosos e morais eram praticamente os mesmos em todos os tribunais inquisitoriais. Não obstante, deve-se observar, que algumas transgressões possuíam jurisdição mista como a feitiçaria e a bigamia. Ambos os casos encontravam-se sob a alçada dos bispos e "não podiam ser julgados pela Inquisição sem fortes presunções de heresia - no primeiro caso, estava a questão fronteira entre superstição e a adoração do demônio (entendida como renegação de Deus, pecado capital contra o primeiro mandamento); no segundo caso, estava em questão não apenas a violação do sacramento do matrimônio, mas também o desprezo pelos sacramentos da Igreja." Bethencourt, Francisco. História das Inquisições. pp. 30-31.
Talvez essa condição de foro misto tenha impulsionado a colaboração entre a justiça eclesiástica e a Inquisição na perseguição aos mágicos na região das Minas.
A uniformidade da jurisdição eclesiástica implementou-se, enfaticamente, a partir do sínodo de 1707, por iniciativa do arcebispo Monteiro e Vide e se compreenderam como um intento de atualização da Igreja às condições da Colônia, entre elas a presença maciça de africanos e da escravidão.
Com efeito, a fixação dos dogmas, a demarcação da interpretação correta dos textos sagrados e a delimitação de práticas heterodoxas constituem processos basilares da atividade eclesiástica. Cartas pastorais e as visitações e devassas eclesiásticas compunham parte do acervo à disposição dos prelados para tentar impor a ortodoxia nas Minas.
Os familiares - membros civis que apoiavam a ação dos tribunais da Inquisição - gozavam de certos privilégios como: licença para o porte de armas, isenção de impostos, isenção de serviço militar e indugência plenária.
De acordo com Francisco Bethencourt a rede de familiares da Inquisição portuguesa foi organizada nas últimas décadas do século XVI, "após uma ordem expedida em 1570 pelo inquisidor-geral cardeal d. Henrique." p. 57.
É interessante ressaltar que a multiplicação das nomeações de familiares contrasta com a redução das atividades repressivas da Inquisição portuguesa com uma queda abrupta no número de prisões e processos.
Enquanto os familiares desempenhavam funções de representação, prendendo e transportando suspeitos e acompanhando os réus nos autos de fé os comissários eram encarregados pelos processos de criminais, na realização de devassas convocando e confrontando testemunhas além de inspecionar os familiares.
Durante todo o Antigo Regime, o gesto e a aparência possuíam um lugar de destaque. A vida pública era considerada como um teatro onde autoridades religiosas e seculares dividiam e disputavam espaço administrando seu capital simbólico. Os visitadores certamente dedicavam uma atenção especial ao início de suas atividades em cada localidade.
As cerimônias marcadas pela austeridade que antecediam as devassas eram preparadas pelo corpo local de clérigos. Instalados em uma sacristia na residência do vigário ou em lugar que
apresentasse conforto e segurança o visitador e sua equipe organizavam os trabalhos deste pequeno e passageiro
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinavam a "obediência dos súditos aos mandados superiores, mandamos que todo clérigo, notário, escrivão, ou semelhante ministro publico, que for requerido para publicar, ou notificar nossas cartas, e mandados, ou de nosso provisor, vigário geral, ou visitadores, no tocante de seus ofícios, o façam com toda a diligência, sem a isso por dúvida, ou escusa (...) e não o fazendo assim serão castigados rigorosamente e sob pena de serem suspensos e pagarem quatro mil réis, não darão aviso às partes antes de fazerem diligencia. p. 332.
http://purl.pt/14120/3/#/18
Como a reta administração da justiça dependa muito da obediencia dos suditos aos madados superiores, mandamos que todo clérigo, notario, escrivão, ou semelhante ministro publico, que for requerido para publicar, ou notificar nossas cartas, e mandados, ou de nosso provisor, vigário geral, ou vistadores, no tocante de seus ofícios, o façam com toda a diligência, sem a isso por duvida, ou escusa (...) e não o fazendo assim serão castigados rigrosamente e sob pena de serem suspensos e pagarem quatro mil réis, não darão aviso às partes antes de fazerem diligencia.
Diversas vezes testemunhas que foram coagidas pelas devassas eclesiásticas tentaram enganar visitadores omitindo informações. Essa estratégia parece ter sido recorrente entre casais que optavam por relacionamentos estáveis sem o sacramento do casamento.
Os editais tinham como destinatários os vigários, curas, capelães curados e autoridades civis e deveria ser divulgado para a população da freguesia a ser visitada. Nestes documentos sempre podia-se ler os nobres motivos da visita: "desterrar os vícios, erros, abusos e escândalos". Uma vez instalados nas casas de autoridades locais dava-se início à procissão para a salvação das almas dos mortos que, usualmente, precediam as devassas nas freguesias visitadas.
O contexto colonial, a escravidão, o tráfico e o meio social estratificado não permitem a recriação e a transposições de valores, práticas e crenças de forma integral e inalterada para a América.
Ordinariamente os antistites delegavam o poder de visitador aos membros da elite eclesiástica da diocese. Nestes casos, provavelmente, a comitiva que acompanhava a visitação era diminuta, principalmente quando comparada com as visitações levadas a cabo pelo próprio prelado.
NOTA: Por exemplo, o vigário da Vara e juiz de casamentos Miguel de Carvalho Almeida Mattos formado em Cânones pela Universidade de Coimbra, designado visitador pelo bispo dom Frei Manuel da Cruz para empreender visitações nas comarcas de Serro Frio e Rio das Velhas. AEAM, Devassas 1748-1749. fl. 3.
NOTA: Para Laura de Mello e Souza as devassas eclesiásticas constituem um dos mais ricos e elucidativos acervos históricos acerca da vida cotidiana no Brasil. Nos códices das visitações é possível recolher informações sobre a idade e o estado civil dos denunciantes e denunciados, além da descrição dos delitos, heresias e transgressões. Para mais informações consultar: SOUZA, Laura de Melo e. As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana: fonte primaria para a historia das mentalidades’.in. Anais do Museu Paulista, tomo XXXIII. São Paulo, 1984, p. 67
NOTA: Ricardo Pessa de Oliveira relata-nos o caso do bispo de Lamego que foi assistido por 17 pessoas.
O número de animais utilizados na deslocação era igualmente elevado, a saber 19. O antístite de Coimbra viajava numa sege puxada por duas bestas, numa comitiva composta por 17 pessoas e 16 bestas. Integravam o séquito o donato, o mordomo, o caudatário, o mestre-de-cerimónias, o meirinho geral, o visitador “logo atrás de Sua Excelência, e se detem 2 e 3 dias por igreja” e o secretário da visita. Além destes seguiam com o séquito duas bestas de carga com almocreve e vários criados. O prelado do Porto, D. João de Sousa, era acompanhado por 28 pessoas, que se faziam transportar por 27 bestas, estando incluídas neste número as de duas liteiras. Auxiliavam o antístite o arcediago de bago, o desembargador secretário da visita, três capelães para os pontificais, sendo que um deles era o mestre-de-cerimónias, e o meirinho geral com dois homens de vara. Além destes fazia-se acompanhar por um cozinheiro e um ajudante de copa, bem como por vários criados e pajens. Mais tarde, D. frei José Maria da Fonseca e Évora, bispo da mesma diocese, na visita que realizou à comarca da Maia no ano de 1748, levou consigo um meirinho, um secretário e 12 a 14 cozinheiros e copeiros. O séquito fazia-se transportar por 18 bestas e um cavalo de estado. Já o arcebispo de Braga era acompanhado por 40 pessoas e 60 bestas 14. Para mais informações consultar:
Além das visitas, os prelados confeccionavam cartas pastorais que deveriam ser lidas nas igrejas de toda a diocese durante as cerimônias - especificamente antes da benção final - exortando os fregueses ao cumprimento dos deveres sagrados junto a Igreja.
Estudos sobre a expansão da Igreja na Capitania do Ouro tem ressaltado a estreita ligação entre a coroa portuguesa e a fé católica através do padroado, sistema que delegava aos monarcas dos reinos ibéricos a administração e organização da Igreja Católica em seus domínios. Na prática, o padroado permitiu que os monarcas portugueses pudessem autorizar a construção de capelas e igrejas além de nomear arcebispos, bispos e eclesiásticos com anuência do papa. BOXER, Charles. A Igreja e a Expansão Ibérica 1440-1770. Lisboa: Edições 70, 1981.
Entretanto, a relação da Igreja e Coroa nas Minas nem sempre foi harmônica. As visitações entraram em conflito com o poder secular por algumas vezes. Em 1725, por exemplo, dom Lourenço de Almeida escreveu ao rei Dom João V reclamando:
(...) como os povos destas minas se queixam gravissimamente (...) porque as visitas que fazem os visitadores nestas minas não constam de outras coisas se não de irem tirando róis das pessoas que tem negras em casa, e sem outra nenhuma ordem de juízo, nem haver testemunhas, nem perguntar se há ou se não escândalo as vai condenando treze ou catorze oitavas de ouro, que executivamente mandam cobrar, e há visitadores que levam tantas condenações, quantas são as negras que os homens tem em casa, e desta mesma forma condenam a quem na quaresma come carne, sem perguntarem se tem queixa que obrigue a come-la, porque como o seu fim é tirarem ouro, fazem as visitas da forma que digo. AHU. Cx. 6, Doc. 52, 1725.
Os corpos violentados, assediados, alquebrados e agredidos dos escravos se recobriam com símbolos de proteção como uma segunda pele capaz de protege-los das arbitrariedades senhoriais. O ambiente citadino, o contato nos chafarizes, nas vendas e nas ruas permitiam que rituais, conhecimentos herbários, fórmulas de proteção pudessem ser compartilhados. Ainda nas vilas, arraiais ou em suas periferias os batuques e calundus, apesar de perseguidos pela Igreja e pelas autoridades da Coroa, funcionavam como antros aglutinadores daqueles que necessitavam de serviços mágicos. Mesmo nos caminho e ranchos que pontilhavam as estradas e nos sertões, era possível aprender práticas mágicas. Ensinava-se benzeduras, sobretudo para curar bicheiras de animais.
A história do Santo Ofício português inicia-se durante o reinado de Dom João III no ano de 1536.
Lucas de Andrade, Visita geral, que deve fazer hum prelado no seu bispado, apontadas as cousas por que deve perguntar. O que devem os parochos preparar para a sua visita, Lisboa, Officina de João da Costa, 1673.
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